Duplantis salta e os outros aplaudem o espetáculo - que só se tem uma pequena noção do quão difícil é quando se pega numa vara (2024)

Quem escreve queria amortecer os queixos caídos, encontrar explicações para as caras boquiabertas e radiografar o fenómeno que existe no salto com vara. Quem foi questionado, e respondeu, queria um jornalista com a mínima consciência do que estiveram a falar.

A frase de quem treina um atleta olímpico, é casado com outra atleta olímpica e acabara de regressar de Paris foi qualquer coisa como “vens lá, dou-te uma vara do meu atleta para a mão e vais ver”. Este pergaminho que versa acerca de Armand Duplantis, o bicampeão olímpico que voou a alturas que só ele atinge para abrilhantar estes Jogos com o seu ouro, tem duas partes, pois foi escrito com um antes e um depois.

A primeira parte começou com Pedro Pinto a hesitar.

“Como é que eu hei de explicar isto.” O suspiro, o que é partilhado por muita gente, sai-lhe a voz alta, mas o dele vem sem a entoação de uma pergunta. O treinador está de volta a Portugal, regressado da capital francesa onde esteve com Pedro Buaró a competir no salto com vara, embora ciente de que não foi apenas isso. Estiveram ambos a “assistir a um espetáculo” e ele gostou “muito”, mas também o frustrou. “Enquanto treinador de alto rendimento”, explica, “tenho um plano na cabeça para que o meu atleta se aproxime e tente ganhar aquilo”. O obstáculo maior na prova que tem apenas um, disposto na horizontal e lá bem no alto, vem implícito no desfecho do seu raciocínio: “Só que eu tenho um plano para chegar ao 2.º, 3.º, 4.º, 5.º ou 6.º lugar. Não consigo ter um plano para ganhar àquele indivíduo.”

O sujeito em questão é tão óbvio, por demais evidente, que Pedro Pinto nem lhe menciona o nome nos 15 minutos de conversa, por telefone, com a Tribuna Expresso. A culpa é do tamanho da redundância: o visado, Armand Duplantis, ouro no salto com vara destes Jogos Olímpicos, já saíra com essa medalha de Tóquio e, em Paris, saltou 6,25 metros, batendo o seu próprio recorde do mundo pela 8.ª vez nos últimos quatro anos. Fê-lo com um momento em que o Stade de France, palco do atletismo, estava à sua mercê, tudo a torcer por ele, inclusive os adversários, que também o incentivaram com aplausos antes do salto e o abraçaram festivamente após aterrar. “Todos aceitam” a superioridade do sueco, de 24 anos, “porque não há hipótese, tens de aceitar”, resume o treinador.

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Na agenda do salto com vara em Paris não surgia escrita qualquer apoteose, muito menos um quase corredor de honra. Mas, quando a prova acabou, o estádio transformado num êxtase coletivo e pintado ao amarelo das camisolas que a maioria vestia, a pista olímpica parecia uma parada a Armand Duplantis: o tipo que vencera as 17 competições anteriores onde participara, dono de nove dos 10 melhores saltos nos papiros da história, aniquilou o recorde olímpico que estava uma dezena de centímetros acima (6,10 metros) da altura que nenhum dos seus 11 adversários sequer logrou ultrapassar na final.

Aliás, apenas Sam Kendricks, americano que levou a prata (ficou a 30 centímetros do sueco), e Emmanouil Karalis, grego que pulou de alegria com o bronze, tentaram fazê-lo.

A incrível ‘aberração’ que é Duplantis

Alcunhado de ‘Mondo’ há muito tempo, o sueco acrescentou mais um centímetro ao seu recorde do mundo, apenas um, como nas oito ocasiões anteriores, porque basta um para chegar aos “prémios a ganhar por parte dos seus patrocinadores”, explica Pedro Pinto. O sueco, nascido na Luisiana dos Estados Unidos, recebe entre 30 a 100 mil dólares segundo a revista “Time” quando, no fundo, se supera a ele próprio, daí exceder-se um centímetro de cada vez. A câmara posta no topo dos 6,25 metros e a respetiva fotografia que captou o momento em que o sueco ultrapassou a fasquia mostrou o conforto na altitude do atleta sem paralelo no salto com vara - e a margem que haverá para continuar a melhorar a marca. O corpo de Duplantis passou um bom palmo acima da barra.

Mas o que explica um atleta tão superior aos restantes, aparentemente impossível de igualar?

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“Ele é muito mais rápido do que os outros”, indica o técnico do outro lado da chamada, ativamente explicador, com um falar acelerado, como se não coubesse no tempo tudo o que tem a dizer. Mas a velocidade que Duplantis adquire não explica tudo, falta salientar o que leva nas mãos: “Ele, com vara, é muito mais rápido e principalmente na parte final. A vara é um objeto pesado e grande, é muito difícil correr com aquilo. Tecnicamente, os outros atletas saltam melhor ou igual, não conseguem é fazê-lo tão rápido. Isto é uma vantagem muito grande porque quanto mais rápido fazes aquilo, uma vara mais forte vais conseguir usar, que dobre menos.”

Ao ser tão rápido, Duplantis consegue levar uma vara com maior tensão e o treinador explica-o, “imaginemos que pesas 80 kg, se usares uma vara para alguém de 85 kg quer dizer que vais ter um push de cinco quilos de diferença”, no caso do sueco, um atleta “tão leve”, esse diferencial “é gigante” porque ele “usa varas muito fortes, se calhar há quem use mais fortes, mas também são atletas mais pesados”. E a sua superioridade reflete-o. Tanto que ‘Mondo’ dispensou, à vista de todos, aquecimentos pré-prova. “Quando foi chamado, levantou-se, não fez nenhum aquecimento, não se preparou, nada, zero, e entra ao máximo e salta.” O português viu e contou que o sueco esteve, depois, “1h20 à espera” da sua vez. “Ninguém no mundo faz isto, nenhum atleta”, salienta.

Duplantis já voou para fora deste mundo há muito tempo.

O sueco saltou 5,85 metros, esperou e a seguir foi aos 6,10 metros. “Isto é uma coisa que não conseguimos explicar, só talvez com o background dele”, suspeita o técnico sobre o rapaz de 24 anos, crescido no quintal de casa onde o pai, no seu tempo, também com vida no salto com vara, e a mãe, outrora atleta, montaram um colchão e uma barra para os filhos se recriarem. “Ele era criança, chegava a casa e, com 5 ou 6 anos, pegava num pedaço de uma vara e corria e saltava, corria e saltava, parava, ia fazer uma coisa qualquer e voltava a correr e a saltar. Ou seja, ele nunca aqueceu, nunca teve processos, é algo natural. Os outros atletas não conseguem fazer isto”, constata o técnico, cujo medo maior é “as pessoas quererem imitá-lo, porque não dá para copiar”.

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Ninguém tem noção

Tão “complexo de explicar” é que na manhã seguinte ao telefone, o sol já a queimar nos primeiros raios, estamos no Complexo Desportivo do Jamor, a entrar para o pavilhão do atletismo com o treinador a segurar numa ponta e o jornalista na outra de um saco roxo, de “Paris 2024”, com “sete ou oito varas” dentro pertencentes a Pedro Buaró, o seu atleta cujo recorde pessoal é 5,82 metros e saltou 5,40 na qualificação dos Jogos, onde a marca mínima para a final estava nos 5,80. Caminhamos espaço dentro, arrumamos o saco no topo de vários outros no canto onde desagua a pista de aceleração até ao colchão, os postes e a barra.

O técnico tira uma vara do saco. Pega-lhe, indica onde é suposto agarrá-la, como deve ser a pega de cada mão. “Agora, experimenta correr.”

Só dar uns passos, a andar, é bastante desafiante, para não descrevê-lo logo como muito difícil. A vara tem 5,10 metros de comprimento, ronda os cinco quilos de peso se posta na vertical. E o objetivo é partir a uns 30 metros do local de descolagem, correr à velocidade máxima, nunca abrandar e ir lutando com o atrito, a gravidade e o peso da massa até outras leis da física serem chamadas caso acertemos no exato sítio onde temos de fazer a chamada, inclinar a vara, plantá-la no chão perto do colchão e dobrar a sua fibra de vidro ou de carbono para que um efeito de fisga nos catapulte para os ares de forma controlada.

Isto não implica apenas pular por cima de uma barreira, nem correr o mais rápido possível durante 100, 200 ou 400 metros, tão pouco lançar um peso ou um dardo, hercúleas tarefas desportivas mas, na génese, brotadas de movimentos basilares do ser humano. O salto com vara será, provavelmente, a disciplina mais contranatura do atletismo. Quando esta suspeita é atirada para o ar pelo leigo presente, Marta Onofre anui, o seu aceno concorda. Às tantas, a recordista nacional (4,51 metros) da especialidade ajuda o marido Pedro a elevar aos 6,25 metros a fasquia que está pendurada nos postes.

Por mais que na televisão haja comentadores repetentes na analogia de Armand Duplantis se elevar a uma altura de cerca três andares de um prédio, é impossível ter noção, sequer uma ideia, do quão elevada está a barra posta pelo sueco. Menos ainda da dificuldade que é saltar usando uma vara. Aí são completos apalpões dados na escuridão. “Agora já podes escrever”, diz Pedro Pinto, com um sorriso malandro, cheio de razão.

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